Criados para controlar o sistema de justiça brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) têm deturpado objetivos oficiais, extrapolado atribuições e atuado a favor de interesses corporativos. Em duas décadas, eles editaram respectivamente 97 e 88 resoluções para alterar normas anteriores, que equivalem a 32% e 46% do total. A maior parte dessas resoluções (30% no CNJ e 25% no CNMP) flexibiliza procedimentos e prazos, atendendo a expectativas dos controlados. A análise é de pesquisadores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP) em artigo publicado na “Revista Brasileira de Ciências Sociais” nesta segunda (5).
Os autores realizaram a análise do conteúdo das 303 resoluções do CNJ e das 206 resoluções do CNMP publicadas entre 2005 e 2019. Elas formam um banco de dados inédito com toda a produção normativa dos dois Conselhos, explica o pesquisador Rafael Viegas, um dos autores do artigo. O software utilizado para o estudo das resoluções identificou a alta frequência do verbo “alterar”. Na análise das ocorrências caso a caso, os pesquisadores verificaram que muitas das resoluções emitidas não são compatíveis com as atribuições dos Conselhos, que deveriam prestar contas e fiscalizar de forma contínua a atuação de seus integrantes, combatendo abusos de poder.
A pesquisa identifica interferências em assuntos que deveriam ser tratados exclusivamente pelo Congresso Nacional, segundo a Constituição brasileira. Exemplos são duas resoluções do CNMP de 2017 para regulamentar a ação extrajudicial do Ministério Público, permitindo que membros da instituição fizessem acordos em casos de improbidade administrativa e em matéria penal, incluindo no sistema brasileiro o mecanismo de plea bargain, um acordo entre promotores e acusados de crimes inspirado no sistema de justiça norte-americano. Essa atuação era vedada pela legislação vigente na época, explica Viegas. “Estamos falando de um órgão que tem pouco controle externo, e, por isso, não deveria realizar esse tipo de acordo”, observa o pesquisador.
Mais transparência para driblar interesses corporativos
Rafael Viegas destaca que o período também foi marcado por resoluções específicas sobre concurso para as carreiras da magistratura e do MP. Ao todo, foram 4 mudanças no CNJ e 13 no CNMP, aponta o artigo. Segundo o autor, essas resoluções contradizem a Emenda Constitucional que criou ambos os Conselhos, que determina como critério para a seleção o exercício de atividade jurídica por, no mínimo, três anos. Porém, os Conselhos decidiram que a titulação do candidato, inclusive pela realização de pós-graduação lato sensu, passaria a contar como tempo de experiência. “Essas mudanças não trazem segurança jurídica para os candidatos”, afirma Viegas. O autor observa: “São mudanças conservadoras, que não têm foco em democratizar as carreiras. Vai afunilando para quem tem condições de pagar os cursos, prestigiando um perfil mais elitista”.
Outra controvérsia sobre recrutamento destacada pelo artigo são as decisões sobre reserva de vagas para pessoas negras em concursos da Justiça e do MP. Em resolução de 2015, o CNJ baseia a seleção de candidatos negros na autodeclaração, em afinidade com o Estatuto da Igualdade Racial. Já o CNMP, além de regulamentar a questão somente em 2017, determina que a comissão organizadora realize a análise de fenótipo dos candidatos, contrariando a determinação legal.
Hoje, CNJ e CNMP têm, respectivamente, 15 e 14 conselheiros e apenas quatro membros externos às carreiras. Para Rafael Viegas, a democratização do sistema de justiça brasileiro passa por repensar recrutamento, formação dos profissionais e aprimorar o controle externo, diversificando a composição dos Conselhos. “É importante destacar que houve avanços a partir da existência dos dois Conselhos, principalmente em relação a metas e produtividade, mas ainda não observamos resoluções com conteúdo que possibilite mensurar adequadamente o desempenho de juízes e promotores”, diz Viegas. “Há necessidade de um olhar atento da sociedade civil e do Congresso para o que se passa nesses dois Conselhos. É preciso também que os dois sejam mais transparentes sobre o que fazem. A autonomia não é um valor absoluto”, completa o pesquisador.