Entre o final da década de 1990 e início do século XXI, diversos países da América Latina passaram por uma significativa mudança política. Eles elegeram governos de esquerda comprometidos em reduzir desigualdades sociais e econômicas. Apesar desses esforços, questões de gênero frequentemente ficaram marginalizadas nas agendas desses governos. Embora houvesse um ambiente favorável para políticas de igualdade de gênero, a ausência de uma agenda clara limitou avanços na reorganização das políticas de cuidado de modo mais generalizado. Isso especialmente em relação à divisão sexual do trabalho e ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Um estudo conduzido por Marta Farah, Mário Aquino Alves, da FGV EAESP, e Mariana Mazzini Marcondes, da UFRN, publicado na revista “Gender, Work & Organization”, analisou como e em que medida as perspectivas de igualdade de gênero redefiniram as políticas de cuidado infantil durante o giro à esquerda na América Latina. O estudo focou em três países: Argentina, Brasil e Uruguai no período entre o final da década de 1990 e início do século XXI. Os pesquisadores examinaram o discurso presente em documentos oficiais relacionados à licença parental e serviços de creche para crianças de até 3 anos.
As pesquisadoras e o pesquisador definem o cuidado como uma prática social fundamental para a reprodução da vida humana, que envolve atender às necessidades básicas de outras pessoas. Quando o cuidado é tratado como uma questão política e social, as políticas públicas podem ser mais democráticas e inclusivas.
Portanto, os pesquisadores analisaram se e como a integração da perspectiva de gênero foi incorporada às políticas de cuidado durante os governos de esquerda nas duas primeiras décadas do século XXI. Além disso, também investigou quais foram as perspectivas mobilizadas para reformular essas políticas.
Resultados e Análises
Uruguai: o país apresentou os maiores avanços na integração da perspectiva de gênero nas políticas de cuidado. A principal perspectiva mobilizada foi a de co-responsabilidade pelos cuidados, alcançada por uma coalizão entre diversos atores da sociedade civil, representantes do governo e legisladoras e legisladores.
Argentina: Embora a co-responsabilidade pelos cuidados também tenha sido uma perspectiva central na Argentina, os resultados foram mais modestos. O foco prioritário nas necessidades das crianças acabou por relegar a um segundo plano as necessidades dos provedores e das provedoras de cuidado, geralmente mulheres. Assim, as mudanças nas políticas de cuidado infantil foram limitadas.
Brasil: teve um contexto favorável principalmente no processo de redemocratização que culminou com a Constituição Federal de 1988. No entanto, durante a virada à esquerda, os progressos foram apenas moderados. A perspectiva de gênero foi razoavelmente marginalizada, e as políticas de cuidado infantil não avançaram tanto quanto no Uruguai, ainda que mais na Argentina.
O estudo revelou que a integração da perspectiva de gênero nas políticas de cuidado infantil variou significativamente entre os países analisados. No Uruguai, houve uma forte incorporação; no Brasil, uma integração marginal; e na Argentina, a integração foi praticamente inexistente. Esses resultados destacam a importância das coalizões discursivas e das dinâmicas políticas na formulação de políticas públicas inclusivas e igualitárias.
A ação pública em relação ao cuidado, quando baseada em suposições tradicionais sobre a família e o papel das mulheres, limita o alcance das políticas de igualdade de gênero. Portanto, uma reformulação das políticas de cuidado, que inclua uma perspectiva de gênero robusta, é essencial para promover uma sociedade mais justa e igualitária.
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