A decisão de Donald Trump de denominar o COVID19 de “vírus chinês” parece inocente ou desinformada. No entanto, trata-se na verdade de mais um ato carregado de significado político.
Trump desdenhou da realidade e criou uma narrativa para seus eleitores. A ideia remete ao nativismo americano, em que o mal sempre vem de fora, seja o estrangeiro que agora também pode ser um vírus. É uma versão para épocas de pandemia do Make America Great Again.
No Brasil, a situação não é distinta. Frases como é apenas uma gripe ou ate mesmo não passa de uma fantasia, entoada pelo presidente da república eram ouvidas, enquanto a doença ia se espalhando no mundo. Apenas quando a epidemia já explodia Bolsonaro mudou discurso, explicando que queria impedir o desespero do povo brasileiro.
O conflito que circunda a verdade e a mentira na política é antigo. Muitos já se debruçaram sobre o tema, tentando buscar uma solução para a quase que “imprescindível necessidade de mentir, ocultar, omitir a verdade” na esfera da política.
Hannah Arendt foi um deles. Diante da polêmica que marcou a publicação do seu livro “Eichmann em Jerusalém”, Arendt viu-se envolta a imagens que se formaram sobre o que havia realmente escrito. Ou seja, percebeu que muitos de seus críticos baseavam-se naquilo que diziam sobre o seu livro e não efetivamente sobre o que estava escrito. Por conta disso, ao ter se visto como vítima de mentiras que não necessariamente eram fruto de má fé, resolveu refletir sobre a dura relação da verdade com a política.
Concomitantemente às verdades tomadas como racionais (2+2=4), existem as verdades tomadas como factuais. As verdades racionais são imutáveis, porque elas são como elas são. Já as verdades tomadas como factuais podem sempre sofrer contingências, vez que não há necessidade de sua própria existência. São assim instáveis, pois podem ser (de)formadas pela tensão que envolve a política. Nesse sentido, a verdade factual é sensível aos debates que dela podem nascer.
A política se dá na esfera pública e é essa o espaço natural das tensões de opinião acerca dos fatos que envolvem a vida na sociedade. Isso seria o cerne da política: o debate crítico, formador de opinião, num jogo de ideias contrapostas. Seria, se não estivéssemos vivendo a era do fanatismo ideológico em redes de velocidade impressionantes.
No mundo moderno das redes sociais e da política feita via twitter, whatsapp, instagram, facebook e demais, nós não queremos realmente levar em consideração diferentes pontos de vista (a não ser para ridicularizá-los ou condená-los); o que queremos é impor aquilo que predispõe a nossa análise dos fatos.
Assim, narrativas contrárias aos fatos são criadas e o mundo se abre para movimentos como o antivax, o terraplanismo e para a construção de bodes expiatório. E como a verdade factual é mais frágil que a verdade racional, mentir deliberadamente se torna a práxis da política fanaticamente ideologizada.
Fatos se confundem com as opiniões que acabam por tomar o próprio lugar deles.
Porém, no final, fatalmente os fatos irão se impor diante das perigosas narrativas que tentam deformá-los: o movimento antivax não esperava por um surto de coronavírus, certamente. Em um desfecho irônico, tanto Trump como Bolsonaro jamais imaginariam serem possíveis alvos do coronavírus.
O problema é que nesse ínterim de deformação e desconstrução o preço a se pagar pode ser muito alto e vidas estão nessa dura conta.
Os autores
Gustavo Fernandes é doutor em economia, professor da FGV EAESP e pesquisador em políticas públicas
Guilherme Antônio Fernandes é doutor em direito pela USP