Agostinho Tadashi Ogura, Geólogo, foi profissional da área de Riscos Geológicos do IPT por mais de 40 anos e participou da criação e implementação do CEMADEN como diretor geral
Rubens de Almeida, Engenheiro Civil e jornalista, dedicado ao desenvolvimento de soluções informacionais para o Terceiro Setor, colabora com a criação e evolução da plataforma Longeviver, mestrando em Gestão e Políticas Públicas (MPGPP) na FGV EAESP
Eduardo de Rezende Francisco – eduardo.francisco@fgv.br Professor de GeoAnalytics, Chefe do Departamento de Tecnologia e Data Science da FGV EAESP e fundador do GisBI, participa do desenvolvimento de plataformas de informação e de IA, com objetivos sociais, pesquisador do FGVanalytics
Neste verão, algumas áreas de alto risco de deslizamentos no estado de São Paulo ganharão um instrumento a mais para aumentar a capacidade preventiva das comunidades contra eventos potenciais de soterramentos: as já famosas sirenes de alerta para evacuação antes da ocorrência dos escorregamentos de terra, deflagrados por chuvas cada vez mais intensas.
Doadas por uma instituição internacional para o estado de São Paulo e anunciadas com muita esperança como uma primeira solução, ainda provisória, as sirenes podem ajudar a evitar o pior em municípios com histórico recente de desastres, onde deverão ser instaladas: São Sebastião, Guarujá e Franco da Rocha.
Para quem estuda a doutrina tradicional de gestão de risco de desastre baseada nos conceitos de Preparação e Prevenção (Preparedness and Prevention, em inglês) e acompanha os exemplos nacionais e internacionais de iniciativas de proteção civil, a alternativa de instalação de sistemas de alerta e alarme por sirene como ação precoce para evitar a morte das pessoas é também um sinal de que o poder público age na tentativa de fortalecer a capacidade de atuação preventiva e encarar esse desafio complexo como uma prioridade de governo.
No entanto, para que o sistema realmente funcione e alcance o objetivo esperado, é fundamental que o município faça a sua “lição de casa” e implemente condições básicas de infraestrutura nas áreas de ocupação de encosta, com melhorias dos acessos e das rotas de fuga, implantação de dispositivos urbanos nas escadarias e vielas com pavimentação, como guarda-corpo e corrimão, iluminação pública adequada, abrigos e áreas de descanso, além de sistemas de drenagem das águas superficiais, separados das vias de locomoção, para evitar que as mesmas continuem sendo eixos lineares de enxurradas durante os eventos de chuvas fortes.
Para o planejamento da atuação preventiva, é essencial assegurar que, ao se acionar a sirene, em qualquer cenário ou circunstância, as pessoas poderão fugir do perigo iminente com a devida tranquilidade e segurança.
As ações urbanísticas estruturais e estruturantes mencionadas anteriormente devem ser combinadas com outras medidas de preparação, como o diagnóstico e levantamento prévio das necessidades e características da população e suas vulnerabilidades sociais extremas. Também é estratégico saber quantos e quais tipos de pessoas estão expostas ao perigo, por exemplose são grávidas, idosos, crianças de colo, pessoas com deficiência ou dificuldade de locomoção, etc.
Numa visão de engenharia social, todo esse conjunto de atividades de preparação, que englobam estudos e levantamentos de diversas naturezas em conjunto com intervenções de infraestrutura básica, sintetiza-se no conceito de cidade resiliente.
Conforme o pacto global da Organização das Nações Unidas (ONU), e especificamente em relação ao ODS 11 da Agenda 2030, para que uma cidade seja considerada resiliente, ela deve fornecer áreas seguras para a população viver, com serviços e infraestrutura adequada. Também deve possuir um governo local inclusivo, competente e responsável, que garanta uma urbanização sustentável e que vise adaptar as cidades e seus habitantes para enfrentar o impacto de eventos cada vez mais extremos, em cenários de mudanças climáticas. Sem essas condições e sem considerar todos os fatores condicionantes e preparatórios para o sucesso de uma operação de defesa civil, medidas de alerta e alarme precoce podem se tornar inócuas.
Nesse contexto é importante perguntar: as cidades, por meio de seus Planos Municipais de Redução de Riscos (PMRR), estão efetivamente adequando a infraestrutura de suas áreas de risco – principalmente nos assentamentos precários onde vivem pessoas em situação de grave vulnerabilidade socioambiental – com ações preparatórias e preventivas que visem a evacuação emergencial em situações adversas de extremos meteorológicos, com ou sem acionamento de sirene?
Na comunidade da engenharia geotécnica e geologia de engenharia não há consenso sobre o uso de sirenes, mas todos concordam que os avisos sonoros devem ser acompanhados de outras medidas para a devida caracterização de situações de perigo iminente. Tais medidas envolvem o estabelecimento de parâmetros, critérios e limiares técnicos embasados em planos de contingência com ações de preparação e prevenção bem estudados e montados sob o ponto logístico e funcional. O envolvimento das lideranças comunitárias também é essencial e os moradores precisam ser protagonistas e conhecer os processos de reação, isto é, saber como se dará o apoio das equipes da Defesa Civil nos diversos níveis de alerta e até mesmo o que foi combinado em termos de ações de parceria entre agentes públicos e privados, como abrigos provisórios e recursos a serem acionados nos casos de perigo iminente e emergência. Tudo muito bem planejado e organizado em protocolos de ação previamente estabelecidos.
Tais ações, que devem compor um Plano Preventivo de Defesa Civil (PPDC), vêm sendo há muito discutidas nos fóruns especializados que ocorrem sistematicamente em todo o país. E todos concordam que somente se bem conhecidas pelas comunidades e tomadas nos tempos certos, essas medidas tornam-se capazes de apoiar a decisão de retirada das populações em risco, pelo acionamento de uma sirene.
No Brasil, as atividades de alerta precoce para desastres naturais se baseiam no estudo e análise contínua das previsões climáticas e meteorológicas e no acompanhamento ininterrupto dos eventos pluviométricos, principalmente durante os períodos críticos nas estações chuvosas. As mudanças climáticas, com aumento da frequência e intensidade dos eventos extremos, assim como as recentes alterações nos regimes de chuva detectadas em várias regiões do território nacional, têm exigido um acompanhamento permanente desses dados em quase todo o país, durante todo o ano,. Para isso, o Brasil conta com uma estrutura competente, que e tem base no Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (CEMADEN).
Criado em 2011, no mesmo ano do desastre da região serrana do Rio de Janeiro e com a missão de prever situações adversas de chuvas com dias e horas de antecedência, o CEMADEN tem emitido notificações de risco para o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (CENAD), que os repassa para as Defesas Civis Estaduais e Municipais com alertas precoces para a iminência de eventos extremos, indicando a região de incidência e possibilidade de continuidade de precipitações cada vez mais elevadas. As prefeituras devem estar estruturadas com planos de contingência específicos que considerem esses alertas do Sistema Nacional de Defesa Civil para deflagrar ações de preparação e prevenção, inclusive a decisão do acionamento das sirenes. E nesse contexto é importante se perguntar: todos os municípios com áreas de risco têm planos de contingência para acionamento das sirenes com base nas notificações de alerta do CEMADEN?
É notória a complexidade das implicações e desafios técnicos e sociais dessa decisão. Se as comunidades não compreenderem bem e não estiverem cientes do que têm que fazer nos momentos de angústia que antecedem as catástrofes, as sirenes podem cair no descrédito, pois se forem tocadas e o desastre não ocorrer, na segunda ou na terceira vez que isso acontecer perderão sua capacidade de mobilizar as populações.
Por isso, é preciso definir os devidos protocolos de ação para orientar os profissionais da Defesa Civil local na decisão de tocar ou não uma sirene. Dados complementares de natureza pluvio-meteorológica e geotécnica precisariam estar disponíveis e devidamente estruturados no bojo dos planos de contingência. Por exemplo, se aquela chuva intensa vai continuar ou não; se há evidências (sinais físicos) de mudança da condição de estabilidade das encostas; qual é essa nova condição em termos de risco iminente e como e em quanto tempo os terrenos podem colapsar caso o cenário futuro mantiver uma dada intensidade ou índice pluviométrico – o que só é possível saber se houver o monitoramento geotécnico das encostas, para a devida compreensão da relação entre infiltração das águas de chuva e desenvolvimento dos mecanismos de desestabilização dos terrenos de encosta. O acionamento de sirenes, portanto, precisa estar embasado em informações meteorológicas, mas também em parâmetros técnicos das condições geotécnicas, além de critérios sociais e protocolos de ação específicos para cada localidade.
Vale destacar o avanço da discussão no campo científico com o desenvolvimento do projeto “Dados à Prova D´Água”, liderado pela pesquisadora Maria Alexandra Cunha da FGV EAESP e que envolveu também as universidades de Warwick e Glasgow (Reino Unido) e Heidelberg (Alemanha), sob a coordenação do Belmont Forum, que compreendeu com protagonismo o CEMADEN. O objetivo, de longo prazo, foi discutir o engajamento das partes interessadas na governança sustentável do risco de inundação para a resiliência urbana. O projeto foi realizado de 2020 a 2022.
A perspectiva de engajamento das partes interessadas deve vislumbrar, em última instância, todos os usuários do espaço geográfico afetado, mesmo que esse uso seja transitório e passivo. Por exemplo, eventuais turistas, ou profissionais que estejam trabalhando ocasionalmente em uma empresa localizada naquele território, devem ser alvo do aviso. Em muitos lugares do mundo, o aviso se dá de forma obrigatória através de mensagem no celular, em protocolos push, que se sobrepõe a qualquer eventual discussão de sigilo e privacidade – se você está naquele local no momento do risco, você será obrigatoriamente avisado através de seu celular, mesmo sem autorização prévia sua ou de sua operadora de celular, seja ela local ou internacional.
Por mais custosas que sejam essas iniciativas, os investimentos em vigilância tornam-se baratos diante das perdas humanas e materiais decorrentes da não prevenção dos problemas e da não implantação de possíveis soluções de alerta antecipado e planos preventivos de defesa civil nessas áreas. Eventuais custos das intervenções de engenharia na preparação e proteção dos ambientes urbanos com o estabelecimento de caminhos seguros para a evacuação da população (as rotas de fuga) podem exigir recursos mais significativos, mas que também serão sempre muito menores do que os custos sociais, políticos e monetários para o poder público e para as instalações privadas fazerem os trabalhos de socorro e reconstrução.
Hoje, recursos computacionais permitem integrar via internet todas essas milhares de informações em uma única plataforma simplificada e interativa para orientação dos agentes públicos, privados e da população envolvida, com interfaces fáceis de serem compreendidas e que poderiam preparar todos, antes e no momento de acionamento das sirenes. Com a competência de engenheiros geotécnicos na análise dos dados de investigação e de sondagem dos maciços geológicos de solo e rocha onde as moradias estão edificadas, e na preparação de algoritmos dedicados a verificar cada situação conforme o seu território, é possível modelar, com os recursos de inteligência artificial, quais são os limiares de perigo que indicam a necessidade de mudança do patamar de atenção, alerta e alerta máximo, numa abordagem de análise dinâmica de risco.
A sirene (tradicional ou “digital”) como dispositivo tecnológico de evacuação de área em risco iminente é apenas um dos muitos estágios de tomada de decisão de um processo complexo de planejamento da atuação preventiva.