No mês de julho, a FGV EAESP, com o apoio da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), promoveu um webinar sobre os desafios e oportunidades do movimento de HIV/AIDS na quinta década da epidemia. O movimento de AIDS brasileiro se caracterizou como um dos pilares de uma política nacional que ficou mundialmente conhecida como uma das melhores respostas à epidemia. A pressão da sociedade civil, nos anos 1990, foi decisiva para que o Brasil se tornasse referência com um programa público de acesso universal a antirretrovirais.
Para além da AIDS, o movimento inspirou outros movimentos (como por exemplo, o da hepatite C) na luta pelo acesso ao tratamento universal, pela prevenção e contra o preconceito e o estigma. Porém, desde os anos 2000 e talvez mais intensamente desde os anos 2010, a luta contra a AIDS e a favor dos direitos humanos vêm sofrendo com uma série de desafios, como falta de recursos e aumento do conservadorismo. Ao contrário do que é difundido pelo discurso do ‘Fim da AIDS’, a epidemia de HIV/AIDS não está sob controle. Atualmente, há mais de um milhão de pessoas vivendo com HIV no Brasil. Somente em 2022, houve mais de 16 mil novos casos, com maior concentração entre jovens de 25 a 39 anos e, ao contrário do que podemos pensar, nem todos têm acesso ao tratamento. Ou seja, é preciso reforçar um movimento social que seja combativo e atuante.
Três ativistas e pesquisadores que atuam no movimento de AIDS desde a década de 1980 participaram deste debate sobre os desafios na quinta década da epidemia: Richard Parker, diretor-presidente da ABIA, Veriano Terto Jr, vice-presidente da ABIA, e Jane Galvão, consultora sênior da ABIA. Os palestrantes ressaltaram alguns desafios para o movimento e política de AIDS no Brasil e, em muitos aspectos, no mundo. Falou-se do contexto político e da a ascensão da extrema-direita ao poder, que adotou políticas que retiram, ao invés de garantir, direitos, o que refletiu na mudança da governança da política de AIDS brasileira. Por exemplo, o que antes era conhecido como Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis, AIDS e Hepatites Virais, passou a ser Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, refletindo a perda da importância – ou a banalização – da AIDS. Falou-se também da biomedicalização da epidemia, que resumem a prevenção e tratamento às tecnologias biomédicas e não a questões estruturais de acesso desigual e questões comportamentais.
Passando para o contexto global, os palestrantes refletiram sobre a história da resposta social e política frente à epidemia global da AIDS, e seu impacto para o enfrentamento da epidemia no Brasil. Falou-se sobre as cinco ondas da epidemia de AIDS, cada uma com um caráter bem distinto: (1) invenção da epidemia, (2) mobilização de um movimento global, (3) consolidação e escalonamento da resposta global, (4) promessa do fim da epidemia (predicada na sua biomedicalização), e (5) crise da resposta global. Os palestrantes refletiram sobre como as circunstâncias sociais e geopolíticas de cada década condicionaram as respostas ao HIV/AIDS. Enfatizaram as atuais circunstâncias (crise econômica estendida, pós pandemia Covid-19, clima de guerra e reanimação de uma nova ‘guerra fria’) como fatores que dificultam o encontro (ou reencontro) de um novo caminho para enfrentar a epidemia global.
Por fim, um dos aspectos bastante enfatizados pelos três palestrantes foi a falta de financiamento. A luta contra a AIDS deixou de ser prioridade não só para as fundações internacionais, que no passado foram fundamentais para financiar projetos do movimento, mas também sofreu um revés nas organizações internacionais como a UNAIDS, cujo último orçamento teve déficit de US$ 50 milhões. Além disso, vê-se um aumento preocupante no que chamam de filantropia farmacêutica, que defende interesses como a propriedade intelectual de medicamentos. Na conclusão, os ativistas ressaltaram a importância de se resgatar a solidariedade como princípio que sempre fundamentou o movimento e que possibilitou uma luta unida contra a AIDS, além das relações Sul-Sul como alternativa à ordem mundial dominada por normas do Norte global, que exacerbam a desigualdade.
(texto de Helena de Moraes – pesquisadora de pós-doutorado FGV EAESP e bolsista Fapesp)